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O irmão esquecido

O post de hoje é uma republicação do post que eu acabei de publicar lá no Sempre um Livro. Estamos lendo a obra O fazedor, de Jorge Luis Borges e um pequeno poema contido na obra citada me despertou várias ideias, que eu tentei articular no presente post. É apenas uma hipótese, uma interpretação minha que ainda está surgindo, mas que já fica registrada como motivadora de discussões acerca do tema:

Ver a ciência sob a ótica da arte e a arte sob a ótica da vida significa dizer que o problema da ciência não pode ser visto no interior de um campo contaminado pelas interpretações reativas e negativas; mas deve ser investigado a partir de um solo não científico: o da vontade de potência. Considerar a ciência sob a ótica da vida significa apreciá-la por sua força criadora”.1

Não conheço muito bem a biografia nem a bibliografia do escritor argentino Jorge Luis Borges. Até agora o único livro que li dele foi fazedor.No entanto, não sei bem porquê, Borges é um daqueles autores que, principalmente se você está envolvido num ambiente acadêmico, como é o meu caso, você sempre ouve falar e, querendo ou não, fica com aquela vontade de ler e conhecer.

Pois bem, com a leitura de fazedor enfim conheci a escrita de Borges. Nós vários poemas, contos e simples frases que compõem este livro, consegui perceber que, antes de mais nada, o escritor argentino possui uma sensibilidade ao lidar com as palavras que te jogam no texto e lhe fazem não querer sair dali tão cedo. É um texto que, segundo minha interpretação, é feito para ser degustado como um bom vinho, para ser prolongado como uma boa conversa num café com os amigos.

Dentre os vários textos que compõem fazedor, um em especial me atraiu demais e me fez pensar em um problema que, segundo minha leitura, é, por excelência, de ordem epistemológica.

Deixe-me explicar, para as coisas ficarem mais claras. O referido texto éarte poética, um poema composto por sete estrofes e que trata justamente do seu título, da arte poética, de como ela se dá, de como ela se mostra.

Ora, você leitor pode então me perguntar: o que a arte poética tem a ver com a epistemologia? É que no processo de ruminação do poema (pra se ler Borges a “ruminância” é qualidade indispensável), num lento e preguiçoso ônibus que cruzava as estradas de Minas Gerais, pensei em uma metáfora que acabou levando o poema para essa ordem epistemológica a qual aludi acima.

Comunicar-se via metáfora é sempre uma tarefa delicada e complicada, pois a metáfora aceita vários níveis de entendimento e nem sempre o “metaforador” consegue ser compreendido de uma maneira satisfatória. Mesmo assim vou me arriscar e espero conseguir atingir o meu telos.

Imagine dois irmãos, ambos na mais terna infância, que começam a brigar em virtude de um brinquedo, que ambos gostavam muito de brincar e que aparentemente sumiu. Um acusa o outro de ter se apoderado e escondido o brinquedo, no entanto, nem um nem outro de fato fez tal coisa e assim o que prevalece é essa disfonia ad infinitum.

Até que aparece um terceiro e desavisado irmão, que nem se importava tanto com o motivo da briga dos outros dois irmãos e, sem querer, encontra o tal brinquedo. Enquanto a briga entre os outros dois irmãos continua, o terceiro irmão fica ali, esquecido, com o brinquedo nas mãos, mas sem saber bem o que fazer com ele.

Essa foi a metáfora que construí após a leitura de arte poética. Inevitavelmente vou tocar em um assunto de uma relevância e de uma complexidade e multiplicidade de interpretações dentro das ciências, que, também inevitavelmente, não será esgotado nesse pequeno texto. Mas quero pelo menos tentar apontar caminhos nos parágrafos seguintes, com uma breve explicação da metáfora dos parágrafos anteriores, para discussões acerca do tema.

De maneira bem pragmática e pouco misteriosa (isso não é muito interessante em um texto, mas vá lá) digo que na metáfora acima os dois irmãos brigões são a Filosofia e a Ciência, amantes do brinquedo, que é o conhecimento. O irmão esquecido é a Poesia.

Como disse acima, o texto de Borges foi o estopim para essa reflexão e a construção dessa metáfora, no entanto, essa ideia já vinha sendo cultivada dentro da minha cabeça há um tempo. Estudando Filosofia da Ciência e própria Filosofia em si, cada vez mais fui percebendo esse verdadeiro embate entre a Filosofia e a Ciência, e creio que dá até pra expandir essa briga (e aí a metáfora ganharia um novo irmão), para dentro da própria Filosofia, no embate entre as filosofias ditas sistemáticas e “fragmentárias”. Enfim, nos campos em que, por definição o conhecimento é o objeto e objetivo, por maiores que sejam os avanços e as conquistas, muita coisa parece não ser conseguida em virtude de desavenças e desencontros.

Aí surge a Poesia. A tarefa (se é que ela tem uma tarefa) dela não é a busca pelo conhecimento. A Poesia é arte e se ocupa com outras instâncias, não necessariamente, nem principalmente com o conhecimento, porém, isso não impede a Poesia de também se deparar com questões epistemológicas, e conseguir reinterpretar essas questões de modo a melhor resolvê-las, a apontar caminhos outros.

Estamos então, caro leitor, no cerne daquilo que falei um pouco mais acima: o despertar de um problema epistemológico através da leitura de um poema de Borges que fala sobre a arte poética.

Retornando à metáfora: parece que o mais interessante a se fazer, para todos os irmãos, é dar um fim à briga entre os dois primeiros e fazê-los perceber que o brinquedo está com o terceiro irmão. Este saberia melhor o que fazer com o brinquedo, afinal estaria em contato com os dois irmãos que já conheciam e gostavam de brincar com ele, e aqueles teriam de volta o tão desejado brinquedo.

Ou seja, longe de parecer uma solução simplista, ou que busque esgotar o assunto, penso que um contato mais forte da Poesia, e da arte poética, com as áreas que por excelência perseguem o conhecimento seriam de extrema validade para todos. Não quero com isso dizer que a solução de todos os problemas epistemológicos do universo está na Poesia, seria muita pretensão e ingenuidade da minha parte.

O conhecimento científico requer toda precisão e solidez e nisso, está claro, a Poesia não pode e nem deve interferir, porém, o conhecimento (e aqui esqueçamos as repartições que com o passar dos séculos foram feitas dentro do conhecimento. Não quero falar de um conhecimento estritamente científico, filosófico e/ou poético, mas sim de um conhecimento maior, que abarque todos esses) pode sim receber o auxílio luxuoso da Poesia.

A Poesia, entretanto, está esquecida, como o irmão da metáfora. E longe das discussões “sérias” sobre o conhecimento, ela, sem compromisso algum, consegue, livre de preconceitos e limitações, chegar até alguns pontos que os embates entre Ciência e Filosofia muitas vezes impedem essas duas áreas de chegar.

Não deve-se deificar a arte e a poesia, mas ao mesmo tempo não deve-se menosprezá-las e encará-las apenas como uma atividade entre outras, totalmente a margem de tudo o que é importante e necessário para o conhecimento.

As conquistas epistemológicas, se temperadas com a sensibilidade e a leveza da Poesia tendem a ser mais frutíferas e verdadeiras. Preconceitos, pressuposições e temeridades muitas repudiam essa tese. Por quê?

A pergunta fica e eu encerro o texto com um trecho do poema que foi o motivo e a razão do próprio texto:

Ver en el día en el año un símbolo

de los días del hombre de sus años,

convertir el ultraje de los años

en una música, un rumorr un símbolo,

ver en la muerte el sueño, el ocaso

un triste oro, tal es la poesía

que es inmortal pobre. La poesía

vuelve como la aurora el ocaso.2

REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS

BORGES, Jorge Luis. Ofazedor. Tradução: Josely Vianna Baptista. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Título original: El hacedor (1960).

DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, vida como obra de arte. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

1 DIAS, 2011. p. 55.

2 BORGES, 2008, p. 148.

Coruja de Minerva #07

O post de hoje da série Coruja de Minerva é uma espécie de resenha que fiz – nos moldes acadêmicos, mas sem qualquer obrigação – sobre um livro que foi, literalmente, um achado. O livro em questão é Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais, do autor gaúcho Gerd Bornheim.

O ato de filosofar

Resenha de: BORNHEIM, Gerd A.. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais. 6ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1983.

Gerd Bornheim, neste ensaio que originalmente serviu como tese para concurso à livre-docência[1], nos coloca um problema que muitas vezes passa despercebido, ou nem chega a ser colocado como um problema: quais são os caminhos, as inquietações existenciais e as motivações que levam o filósofo a filosofar?

No capítulo inicial deste ensaio que se tornou o livro sobre o qual nos debruçamos, o autor coloca o problema supracitado no parágrafo anterior e nos mostra a importância de questionar esse problema, por um viés existencial, não se importando se o pensamento do filósofo não leve em conta esse aspecto. É por isso que Bornheim cita o exemplo de Descartes: o filósofo francês em momento algum dentro de sua filosofia formulou um pensamento que possa ser chamado de existencial, no entanto, teve um impulso inicial existencial para construir sua filosofia.

Partindo desse exemplo, o próprio autor especifica, de uma maneira bastante profícua a tarefa que se propõe na presente obra:

O estudo da consciência filosófica, desde a sua etapa ingênua e pré-filosófica até o despertar para o problema do sentido da realidade, acompanhando as etapas básicas e necessárias de seu desenvolvimento, é o que se propõe, mais especificamente, o autor dessas páginas.[2]

Ainda no primeiro capítulo, o autor apresenta, de maneira mais ampla, o movimento dialético que ele percorre durante o livro, especificando cada momento deste movimento: a admiração ingênua (gênese do filosofar), seguida de um comportamento dogmático, a ruptura desse primeiro momento, através da experiência negativa, que pode se manifestar de várias maneiras e é marcada pela dúvida e pela crítica e, por fim, a chamada “conversão filosófica”, síntese do movimento dialético, que seria, de fato, o ato de filosofar.

Durante o livro, cada um desses momentos é exemplificado e detalhado, será este também o mesmo percurso da presente resenha. Refazendo o caminho do autor pretendemos mostrar a importância dessa “conversão filosófica” para qualquer filósofo.

Ainda no primeiro capítulo, Gerd Bornheim nos fala um pouco, remontando-se às filosofias de Platão e Aristóteles, do principal tema dos dois capítulos seguintes, aquele que ele considera uma atitude fundamental para o filosofar: a admiração. Com o seu caráter de abertura ao mundo, a admiração constitui um movimento positivo do homem, movimento que dá sentido à realidade e coloca no homem o gérmen filosófico.

No entanto, dentro da admiração, o autor percebe problemas, que não fazem dela, unicamente, a resposta para o problema aqui colocado. A admiração “pura” é ingênua, ou seja, quando se está admirado com alguma coisa, a princípio, também se está num gesto ingênuo, isso gera no homem que está admirado um comportamento dogmático, pré-crítico e, assim, ainda não o faz capaz de filosofar.

A análise desse comportamento dogmático do homem é o tema central do terceiro capítulo. Com a admiração o homem consegue enxergar sentido no mundo. Porém, permanecer numa visão extremamente confiante e otimista nesse sentido, paralisa o homem, diminui o seu horizonte, que fica como que aprisionado em um único e irrevogável sentido, em uma visão de mundo pronta e fechada. A postura dogmática, acima de tudo, tende a propiciar sempre uma perspectiva pragmática e, porque não, utilitarista, acomodando-se sempre em uma segurança fundamental, em um sentido que garanta todo o resto.

Não é sem propósito que o autor conclui que: “o homem só abandona a postura dogmática a partir do momento em que julgar, por razões suficientemente radicais, que a realidade, basicamente, deixou vacilar ou perdeu o seu sentido[3]”.

Para chegar a esse ponto e, posteriormente, conseguir transcendê-lo, o homem necessita de uma experiência de ruptura, que pode se expressar de várias formas e é notadamente marcada pela crítica e pela negatividade.

É a chamada experiência negativa, segundo momento do grande movimento dialético proposto na obra, tema principal dos capítulos quatro, cinco e seis.

No capítulo quatro, o autor nos situa no problema da experiência negativa. E através dela e, somente através dela, que o homem consegue transpor as amarras da dogmaticidade e chegar a um outro momento. Embora a experiência negativa tenha sido pensada e ponderada durante toda a história da filosofia, é no pensamento do século XX que ela terá de fato uma importância quase que central:

A valorização da experiência da negatividade invadiu o pensamento contemporâneo. A conseqüência [sic] são análises extremamente lúcidas e penetrantes, que põem [sic] à disposição do pesquisador um material imenso. Às vezes, contudo, o valor da experiência da negatividade é exacerbado, passando a valer, com maior ou menor intensidade, como um absoluto, advindo daí o problema do niilismo, uma das questões centrais da tão discutida crise contemporânea.[4]

Disso decorre que, a característica básica da experiência negativa, antes de tudo, é o seu caráter egocêntrico, pois, ao contrário da admiração, onde o homem vê no mundo algo que lhe dê sentido, a experiência da negatividade leva o homem para dentro de si mesmo.

O autor então divide, no capítulo cinco, sem a pretensão de nenhuma exatidão, mas de ilustração, quatro diferentes posturas assumidas dentro da experiência da negatividade, a saber: a postura de passividade intelectual, de atividade intelectual e, da mesma forma, de passividade existencial e atividade existencial.

A consciência da ignorância e a dúvida (seja ela cética ou metódica) configuram os dois tipos de experiência negativa intelectual, sendo aquela passiva e esta ativa. Para explicá-las melhor o autor utiliza exemplos como os de Husserl e Descartes.

Já as experiências negativas existenciais são ilustradas pela angústia e pela revolta. A primeira, passiva, é explicada através da personagem Antoine Roquentin, protagonista do romance A Náusea, de Jean-Paul Sartre. A segunda, ativa, é explicada através da revolta metafísica, de Albert Camus.

Esses tipos de experiências negativas citados possuem certas nuances e particularidades, que foram devidamente exploradas pelo autor no decorrer do texto. Como nosso objetivo na presente resenha é uma visão panorâmica da obra e foca no movimento dialético como um todo, que é o fio condutor do livro, não entraremos nas nuances e particularidades de cada experiência negativa.

O que se faz necessário para o nosso propósito é o seguinte: qual é a importância da experiência negativa para o ato de filosofar? Por que a experiência negativa se coloca como o passo seguinte, após a admiração ingênua e o comportamento dogmático do homem?

O autor nos dá indícios das respostas para essas questões no capítulo seis. A essência dessa chamada experiência negativa, em qualquer de seus âmbitos e categorias é a separação, a ruptura, a negação.

Posto isso, as experiências da negatividade se mostram como um passo necessário para se desenvolver o espírito crítico, os questionamentos e inquietações, momento crucial para o filosofar, afinal, sem essa tomada de postura de negação e crítica ao que é dado não se faz filosofia.

No entanto, a experiência negativa não é algo assim tão simples, muitas vezes – o autor nos alerta para isso – ela não se torna apenas um momento dialético na caminhada para a síntese, o ato de filosofar, ela se configura como uma quebra do movimento dialético. Isso se dá quando o homem mergulha de tal maneira nela, que se fecha aí, a consequência final disso não é outra que não o niilismo.

Porém, não é exatamente a saída niilista que é buscada aqui e sim a “conversão filosófica”, por isso o autor nos diz:

Se através da experiência negativa se verifica uma perda do mundo, esta mesma experiência possibilita a abertura do horizonte para uma reconquista do mundo. Tal reconquista, por sua vez, só é possível na medida em que se ultrapassar a experiência da negatividade, vencendo o egocentrismo que constitui a sua alma. Pois o característico da experiência da negatividade é tornar o homem prisioneiro de seu próprio inferno, limitando-o à sua particularidade. E o único caminho para vencer essa prisão radica num ato de conversão espiritual, numa autêntica metanóia [sic], no sentido de estabelecer-se uma abertura para a realidade, superadora de toda experiência negativa, descentralizadora do egocentrismo.[5]

Chegamos então, enfim, ao capítulo sete: A conversão filosófica. É neste capítulo final que Gerd Bornheim chega à conclusão de sua tese principal, é aqui que o movimento dialético se concretiza. Tanto a admiração quanto a experiência negativa possuem suas características filosóficas. Entretanto, ambas também possuem limitações que só devidamente repensadas podem ser eliminadas. Depois do filtro crítico da negatividade a admiração pode possuir estatuto filosófico, da mesma forma que, a experiência da negatividade, tocada por uma admiração que não seja ingênua pode ser superada, livrar o homem do egocentrismo e abri-lo novamente para o mistério do mundo.

Após esses movimentos se dá a conversão filosófica. O homem então pratica um ato que, justamente por ter sido existencialmente assumido e vivido, requer responsabilidade, decisão. Assumir a filosofia como tarefa, intensamente.

Podemos, assim, afirmar que o espírito crítico traz em seus lábios tanto o fel da negatividade quanto o sabor do desvelamento do real. Se, de um ponto de vista genético, mergulha na experiência negativa, o que lhe dá dimensão filosófica, porém, é o permanecer disponível ao mistério do real. Neste sentido, pode-se compreender a passagem da indiferença ontológica para a problemática da diferença ontológica, isto é, todo o comportamento que faz o homem transcender a sua dogmaticidade relativa ao fundamental.[6]

O autor termina sua obra mostrando, de maneira bastante clara, como o movimento dialético proposto e defendido por ele durante a mesma é completado e como é esse movimento dialético que mostra a ascensão do homem à filosofia. Esse processo é, de fato, existencial, passa pelas vivências e inquietações do homem que filosofa, independente de qual seja a filosofia que saia daí.

Outro ponto válido a ser ressaltado é que em nenhum momento da obra, Gerd Bornheim propõe que a tese defendida por ele seja tomada como uma espécie de guia ou manual para se filosofar. Não! As possibilidades de o homem permanecer no comportamento dogmático ou se fechar na experiência da negatividade existem e podem levar a outros caminhos que não a filosofia e até mesmo a conversão filosófica pode gerar pensamentos completamente díspares. O essencial e indispensável é conseguir perceber que o ato de filosofar só é transparente quando transcende. A obra e a nossa resenha terminam assim:

A Filosofia é uma ocupação do homem, que encontra nele o seu ponto de partida como também o seu ponto de chegada. Contudo, o homem não pode ser compreendido como uma realidade reduzida ou fechada sobre os seus próprios limites. Neste sentido, podemos dizer que o homem não é a medida do homem, pois a fidelidade à sua própria essência só é compatível com um comportamento cujas raízes se encontram no sentido da abertura, de disponibilidade, de consentimento admirativo ao ser. Consentindo ao ser, realiza-se o homem como liberdade e como inteligência. O ser é, pois, a medida do homem e do filosofar.[7]


[1] Cf. Advertência In.: BORNHEIM, Gerd A.. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais. 6ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1983.

[2] BORNHEIM, 1983, p. 4.

[3] BORNHEIM, 1983, p. 39.

[4] BORNHEIM, 1983, p. 54.

[5] BORNHEIM, 1983, p. 78-9

[6] BORNHEIM, 1983, p. 94.

[7] BORNHEIM, 1983, p. 100.

Coruja de Minerva #06

Dia de post da filosófica série Coruja de Minerva.

Hoje vou fazer quase que uma “brincadeira” aqui.

Olhando meus textos antigos, do início da faculdade (na época tinha 17 anos!) me deparei com um que falo sobre a Apologia de Sócrates – texto clássico em qualquer curso de Filosofia – e literalmente me diverti com as coisas que escrevi na ocasião. O que resolvi fazer então? Publicá-lo aqui no Un Quimera, no post de hoje, como exercício de olhar para trás e ver como, inclusive textualmente, nós mudamos e mudamos bastante!

Citando Raul Seixas e bastante empolgado com a Filosofia Antiga, escrevi esse texto e agora, três anos depois, publico aqui:

O Mártir da Filosofia 

“Vida: alguma coisa acontece. Morte: alguma coisa pode acontecer”.

Sócrates foi um grande filósofo, um dos pioneiros dessa área e ensinou muito a seus discípulos assim como continua ensinando a todos que buscam aquilo que está sob a luz, a verdade em sua plenitude.

Porém Sócrates, durante seus aproximadamente 71 anos de vida,  não deixou nada escrito e por isso todos os seus ensinamentos estão contidos em obras dos seus discípulos.

Trato de uma dessas obras em especial no presente texto: Apologia.

Escrita por um dos seus mais famosos discípulos, Aristócles (vulgo Platão), Apologia é uma obra que nos mostra a defesa de Sócrates contra as acusações que sofreu da tríade Meleto, Ânito e Lícon; passando por um diálogo entre Sócrates e Meleto, chegando até a pena que recebeu Sócrates e terminando com os momentos pós-condenação. Dali pra frente poucos foram os momentos que separaram o venerado filósofo de sua taça de cicuta.

Segundo o doxógrafo Diógenes Laércio, a acusação sofrida por Sócrates foi a seguinte:

“A seguinte acusação escreve e jura Meleto, filho de Meleto, do povoado de Piteo, contra Sócrates, filho de Sofronisco, do povoado de Alópece. Sócrates é culpado de não aceitar os deuses que são reconhecidos pelo Estado, de introduzir novos cultos, e, também, é culpado de corromper a juventude. Pena: a morte”.

Partindo disso, Platão expõe detalhadamente a auto-defesa de Sócrates perante seus acusadores e todo povo ateniense.

Sócrates fundamenta muito bem sua defesa utilizando-se de argumentos sólidos, mas não de uma maneira prolixa ou com o intuito de enganar, ele mesmo antecipa como será seu discurso: “serão expressões espontâneas, nos termos que me ocorrerem, porque deposito confiança na justiça do que digo; nem espere outra coisa qualquer um de vós”.

Primeiramente Sócrates expõe ao povo que existiam antigos e novos acusadores e diz que os primeiros são os mais perigosos pois proferiram muitas calúnias a seu respeito. Até citar seu grande amigo Querefonte, e dizer que uma atitude deste gerou uma grande pesquisa feita pelo próprio Sócrates.

Em meio a todas as acusações que Sócrates vinha sofrendo, Querefonte resolve ir ao oráculo de Delfos perguntar se existia alguém mais sábio que seu amigo Sócrates, a resposta foi negativa e como o oráculo jamais mente Sócrates resolve buscar nos sábios de sua época (políticos, poetas, artesãos) alguém mais sábio do que ele.

O simples fato de ter essa crença ferrenha na palavra do óraculo já pode ser considerado um dos álibis de Sócrates, afinal, se ele realmente não acreditasse nos deuses por que cargas d’água acreditaria no oráculo?

Enfim, Sócrates relata sobre sua pesquisa, sobre as inimizades que construiu no curso dela e aí surge talvez a mais célebre de todas as frases deixadas por ele: “Só sei que nada sei”.

A grande descoberta de Sócrates nessa pesquisa foi a de que o verdadeiro saber consiste em saber que não se sabe, e com essa certeza Sócrates se mostra tranquilo, e enfim consegue se convencer de que sim, ele era mais sábio do que todos os outros, pois só ele conseguiu enxergar que a certeza do não saber é mais sábia do que qualquer “achismo” de saber.

Isto posto é iniciado um diálogo entre Sócrates e Meleto. Nesse diálogo Sócrates mostra que apesar de não ter sido sofista também era um mestre da retórica, Meleto se contradiz várias e várias vezes, sempre virando presa fácil para os astutos questionamentos de Sócrates, um verdadeiro baile.

Aí então Sócrates começa a falar diretamente sobre a questão da morte:

“Algum de vós poderia talvez altercar-me: ‘Sócrates, não te envergonhas de haveres exercido tal atividade, que agora coloca em risco tua vida?’ Eu responderia a este: ‘Não falas bem se pensas que alguém, tendo a capacidade de fazer algum bem, mesmo sendo pequeno, deva calcular os riscos de vida ou de morte e não deva olhar o injusto e se pratica as ações de homem honesto e corajoso ou de infame e mau’”.

Além de saber que não sabe o outro grande trunfo, a outra grande revolução do pensamento socrático é esta “falta de medo” da morte, ainda nos dias de hoje esse pensamento em relação a morte é considerado por muitos como estranho, são pessoas que tem verdadeira aversão à morte; Sócrates nos mostra que a morte nada mais é do que um caminho pelo qual todos nós um dia vamos passar, e que a justiça e a virtude devem sempre ser seguidas, o medo da morte não pode ser um obstáculo para tal.

Sócrates continua seu discurso cada vez mais seguro, valorizando a alma e mostrando sua abstenção em relação a política comum.

Por fim Sócrates, seguro de que disse tudo da maneira mais sincera possível e que com isso demonstrou sua sabedoria e ao mesmo a estupidez de seus acusadores, chega a conclusão de que não quer misericórdia, deixa tudo nas mãos dos deuses (sim, Sócrates acredita neles) e dos juízes.

A pena então é decretada, Sócrates é condenado a morte e sem nenhum alarde acata essa decisão.

Dirige-se aos que votaram contra ele de uma maneira superior:

“Talvez imagineis, senhores, que me perdi por falta de discursos com que vos poderia persuadir, se na minha opinião se devesse tudo fazer e dizer para escapar à justiça. Engano! Perdi-me por falta, não de discursos, mas de atrevimento e descaramento, por me recusar a proferir o que mais gostais de ouvir, lamentos e gemidos, fazendo e dizendo uma porção de coisas que declaro indignas de mim, tais como costumais ouvir dos outros”.

E dirige-se aos que o absolveram de maneira mais amigável:

“Façamos mais esta refelxão: há grande esperança de que isto seja um bem. Morrer é uma destas duas coisas: ou o morto é igual a nada, e não sente nenhuma sensação de coisa nenhuma; ou, então, como se costuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte!”.

Sócrates parte então para a sua morte mas nos deixa um legado de pensamentos revolucionários que alteraram e alteram todo o estudo relacionado à Filosofia, Sócrates de uma maneira ou de outra foi um visionário, um “mártir da Filosofia”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SEIXAS,Raul. Faça, fuce, force. SEIXAS, Raul. Documento. São Paulo, MZA, 1998. CD. Faixa 3.

PLATÃO. Apologia de Sócrates. PLATÃO. Coleção Os Pensadores, Nova Cultural, São Paulo, 1999.

Sísifo Feliz

“Deixo Sísifo na base da montanha! As pessoas sempre reencontram seu fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que
nega os deuses e ergue as rochas. Também ele acha que está tudo bem. Esse universo, doravante sem dono, não lhe parece
estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo.
A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”.

(Albert Camus – O Mito de Sísifo)

Para ler, ouvir e sentir ao som de “Luz  Negra” de Nelson Cavaquinho.

Ó, Sísifo!

Meu amigo e meu irmão
Meu eu e meu outro.
Sentido existe, que não o absurdo?
Existência existe, que não essa?

Berram os animais
Cantam os rios
Assobiam as plantas
E o homem?

O homem chora.
Chora e silencia.

Sua pedra é seu fardo
e também seu combustível.

Seu suor é seu desgaste
e também sua recompensa.

Sua vida é condenada
e por isso mesmo flerta com a liberdade.

Ó, Sísifo, meu caro!

Diga como consegues
que eu também estou tentando.

Diga o que não se diz
que eu ouço e digo: sou feliz!

Rogério Arantes 

Lembra?

Não, ainda não vou falar do disco novo do Rafael Castro de título homônimo ao desse post. Num futuro próximo possivelmente o farei.

O post de hoje é o fim de uma série, iniciada há dois meses. Falo hoje sobre o último episódio da primeira temporada de Black Mirror.

O seriado de Charlie Brooker é curto e grosso (mas ao mesmo tempo pode proporcionar longas discussões e finas apreciações). Com histórias e personagens totalmente diferentes em cada um dos três episódios, o pano de fundo é o mesmo: um mundo contemporâneo (fictício para alguns) onde questões existenciais, políticas, econômicas, tecnológicas são colocadas em jogo.

Vamos ao terceiro episódio:

1×03 – The Entire History of You

Para esse último episódio da temporada, Charlie Brooker parece ter focado mais no drama puro, do que nas sátiras e nos toques de humor ácido dos outros dois episódios. Bom ou mau, isso faz do terceiro episódio um episódio mais sério e mais tenso, não menos interessante por isso.

Dividido em quatro partes, esse episódio tem como principal “protagonista tecnológico” uma espécie de chip, ou “grão” que é implantado no cérebro das pessoas. Esse “grão” armazena todas as memórias das pessoas e permite a elas que assistam toda e qualquer memória, a qualquer momento, em suas tv’s de plasma.

A problemática do episódio parte daí. Liam e Ffion, um casal aparentemente comum, vão jantar com velhos amigos de Fi. A cena da reunião entre os amigos, assim como nos outros episódios, busca resgatar momentos muito reais e muito palpáveis pra qualquer um de nós, no entanto, sempre leva em conta as diferenças tecnológicas (no caso esse “grão”) do mundo Black Mirror, para o nosso mundo.

Nesta reunião entre amigos, surge Jonas. Um cara bem irônico e ácido, que solta os principais pitacos da conversa. Liam percebe que sua mulher Ffion dá muita atenção a Jonas, ri de suas gracinhas e tudo mais. Voltando pra casa, a desconfiança de Liam vai aumentando e no decorrer do episódio os arquivos de memória vão sendo analisados na tv de plasma e Liam descobre do relacionamento amoroso de sua mulher Ffion e de Jonas.

Mais uma vez, como venho pontuando nos outros posts sobre a série, um assunto, um roteiro bem comum, bem batido é transportado pra uma nova ótica e assim resignificado e assim pode ser pensado de outras e novas maneiras.

Considerando que através dos arquivos de memória proporcionados por essa tecnologia, você pode rever e relembrar de tudo, literalmente tudo; os momentos bons e divertidos, os momentos de possível traição ou coisa parecida (como é o caso do episódio), como ficam as relações e as interações estritamente humanas? É um novo e nunca antes visto desafio que Charlie Brooker nos propõe neste último episódio.

O fim do episódio, assim como ocorre nos outros dois, é emblemático. E pode ajudar ainda mais nesses pensamentos acerca da memória, da “capacidade de lembrar em outro tempo, do vento futuro que passou na flor do tempo” como diria José Paes de Lira.

Enfim, chegam aos fim os meus posts sobre Black Mirror. Espero que novas temporadas venham por aí, para então surgirem novos posts e pensamentos sobre a série. Acredito mesmo que os três posts sobre a série tenham ficado um pouco confusos, principalmente o do segundo episódio, devido àquela minha vontade de falar muito, mas ao mesmo tempo não dar spoiler nenhum. A intenção é chamar a atenção dos leitores do blog para assistirem a série, e então depois, se quiserem conversar sobre aqui nos comentários ou em qualquer lugar.

Extremamente Contemporâneo

Hoje é dia de falar do segundo episódio da primeira temporada do micro-seriado Black Mirror.

Comecei a empreitada de falar desse seriado, criado por Charlie Brooker,no mês passado e dou continuidade hoje. A exemplo do primeiro episódio, o segundo nos mostra situações fictícias que contém muita realidade travestida dentro delas.

1×02 – Fifteen Million Merits

Se no primeiro episódio a aposta do enredo central era uma releitura de um roteiro básico de sequestro e pedido de resgate, esse segundo episódio segue uma linha parecida. Só que agora, ao invés de um sequestro com pedido de resgate, a história é de amor. Sim, no meio de tanta coisa, Charlie Brooker conseguiu colocar uma história de amor como enredo principal do episódio. Mas não se iluda leitor, a história de amor não é simples e comum, tem várias implicações que a diferenciam de qualquer outra história de amor.

Ainda voltando ao primeiro episódio, ao analisá-lo disse que ele, por mais fictício que fosse, falava de um contemporâneo agora, 2012. Nesse segundo episódio não dá pra falar isso, o que temos nele, é, sem dúvida, uma sociedade um pouco mais avançada cronologicamente do que a nossa, porém é justamente por isso que fiz esse trocadilho no título do post, penso que o mundo mostrado nesse segundo episódio nada mais é do que o nosso mundo levado a alguns extremos.

Entrando agora no segundo episódio de vez, dá pra começar mesmo pelo título, que numa tradução livre poderia ser “quinze milhões de méritos”. O mundo mostrado no episódio, que a exemplo do primeiro episódio é particionado mostra pessoas enclausuradas em um ambiente cinza e fechado, cheios de virtualidades e com quase nenhuma realidade. Essa, no entanto, é a realidade das personagens. Bombardeados a todo o momento pela mídia da época como um todo e, em especial, pelos seus segmentos pornográficos, de reality shows e programas que mostram seres humanos sendo ridicularizados totalmente (vamos combinar, isso não é, de fato, extremamente contemporâneo?) eles vivem somente com isso, tendo que pedalar em uma bicicleta ergométrica o dia inteiro, para ganhar os chamados “merits”, que seria uma espécie de moeda da época. É através dos “merits” que eles compram coisas, na maioria das vezes virtuais, como roupas para os avatares deles por exemplo.

Algumas personagens mais sugestionáveis são retratadas ao longo do episódio e novamente uma realidade muito palpável nos salta aos olhos, como por exemplo aquele cara que fica impressionado com tudo e quer comprar tudo, ou então aquele que dá risada de tudo, despreza todos e fica como que hipnotizado frente as programas pornográficos.

As duas personagens principais do episódio, no entanto, se diferenciam. Bing logo se apaixona por Abi, por ouvi-la cantar. Ele então faz uma aproximação e sugere a ela que entre na disputa do Hot Shot, o reality show que cria ídolos musicais para a fama e o sucesso (tão familiar…). Num primeiro momento Abi fica receosa, mas Bing consegue convencê-la a participar e, além disso, dá todos os seus 15 milhões de merits para que ela possa se inscrever no concurso.

No concurso, quando Abi fica frente a frente com os três jurados (cada um representando uma grande frente da mídia) muita coisa acontece e desse momento em diante coisas que talvez tenham ficado explícitas até então são reveladas. A repercussão da apresentação de Abi no Hot Shot gera uma mudança no episódio, que então caminha para o seu final e tem inclusive a participação do próprio Bing no mesmo reality show Hot Shot.

Talvez tenha ficado um pouco confusa essa pequena apresentação do episódio, mas é que sinceramente, assim como fiz na apresentação do primeiro episódio, fico me policiando a todo o momento pra não escrever demais e não falar demais coisas que merecem ser vistas diretamente.

Mais uma vez elogio e exalto a série, que nesse segundo episódio continua falando de coisas contemporâneas, quase reais, um pouco distópicas. E aproveitando que toquei nesse conceito, fecho o post de hoje, já pensando no mês que vem, onde finalizo a série de posts falando sobre Black Mirror, fazendo uma comparação rápida com uma das mais conhecidas e mais importantes distopias já criadas, falo de 1984, de George Orwell.

O enredo desse segundo episódio lembra um pouco o enredo da obra de Orwell, os detalhes também lembram, como as teletelas e tudo mais, no entanto, uma e talvez a crucial diferença é que, se no livro resta ainda um resquício de esperança, apesar de tudo, aqui Charlie Brooker parece aniquilar toda e qualquer esperança. A leitura contemporânea do seriado consegue ser ainda mais cinza. Resta ver o terceiro episódio pra saber se essa visão continua…

Releituras Pop #03

“Deixando a profundidade de lado, eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia! Fazendo tudo e de novo dizendo sim à paixão, morando na filosofia.”

Começo o mês de maio com mais um post da série Releituras Pop.

A ideia de hoje é homenagear e ao mesmo tempo dar algumas risadas, relendo e dialogando com a obra de um cara que tem seu nome marcado na história da música brasileira. Mostrar que mesmo os monstros sagrados da música pop também tem seus momentos ambíguos, não grandiosos, etc.

Não foi sem propósito que comecei o post de hoje com um dos versos mais bonitos e tocantes da música brasileira. No entanto, na mesma canção que contém este verso (Divina Comédia Humana) também temos outros versos bem engraçados, vamos começar então com ela:

Divina Comédia Humana

Esta canção, linda e melódica, já de cara (em seu título) faz alusão a duas grandes obras da literatura mundial, a saber: A Divina Comédia, de Dante Alighieri e uma obra homônima de Honoré de Balzac.

Deixando de lado as possíveis influências que estes dois livros podem exercer na canção, vamos direto a letra dela e aqui, lógico, pegaremos carona nas interpretações feitas por Zeca Baleiro e sua plateia no Festival de Músicas Infames (se quiser relembrar isso tá lá no primeiro post dessa série):

Em meio a tanta beleza e delicadeza nos versos dessa canção, Belchior depois de dizer que estava mais angustiado que o goleiro na hora do gol (bota angústia nisso!) e sentir alguém entrando nele como o sol no quintal nos brinda com uma “cacofonia sexual” (pode ir se acostumando, praticamente tudo nesse post será levado para esse lado da cacofonia e do duplo sentido, quase sempre remetendo ao lado sexual da coisa. Falsos moralismos e mimimis não vão gostar nada disso, então, se você, caro leitor, estiver nessa onda pode até parar de ler por aqui). Aí o analista amigo meu (aí o analista me comeu).

Depois desse fato ambíguo, Belchior diz que o amor é uma coisa mais profunda que uma transa sensual, mas, logo em seguida, contrariando seu analista, deixa a profundidade de lado e nos fala o verso que abre esse post.

Logo em seguida vem a outra possível interpretação ambígua-sexual da canção: “Quero gozar no seu céu, pode ser no seu inferno”. O que poderiam ser céu e inferno aqui? Tá fácil, não? Essa eu vou deixar pros leitores me dizerem nos comentários.

Pra fechar a letra, Belchior cita Olavo Bilac: “Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso, e eu vos direi no entanto: enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto!”

Independente de qualquer releitura pop bizarra, levando pro lado mais banal da coisa, essa canção é uma das obras-primas de Belchior.

Fotografia 3×4

Assim como peguei carona nas interpretações de Zeca Baleiro e sua plateia na releitura anterior, pego carona agora na dica do amigo e leitor Ivan Bilheiro, que no último encontro do Sempre um livro (nosso grupo de leituras), me lembrou de uma outra “cacofonia sexual” de Belchior, dessa vez na Fotografia 3×4.

Mais uma vez, antes de qualquer releitura pop, tenho que dizer que essa é outra daquelas canções de Belchior que dizem muito pro blogueiro aqui. Quantas e quantas vezes já não ouvi a Fotografia 3×4 e pensei em tanta coisa, inclusive na tamanha sensibilidade que teve Belchior ao escrever essa música. Cito um verso em especial, pra começar:

“A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia, e pela dor eu descobri o poder da alegria e a certeza de que tenho coisas novas, coisas novas pra dizer!”

O Ivan tinha me dado a ideia da cacofonia de uma frase muito repetida na música, em especial no final: Eu sou como você, eu sou como você, eu sou como você, que me ouve agora! (Eu só como você, eu só como você, eu só como você que me ouve agora!).

Fotografia 3×4 é um verdadeiro retrato de alguém que vem do Nordeste para o Sudeste e vive aqui todas as angústias que alguém nessa situação vive: a saudade de casa, as dificuldades de aceitação na nova terra, os amores, alegrias e frustrações, enfim, o aprendizado e crescimento de um homem em um lugar novo e desconhecido pra ele.

Fazendo a releitura a partir dessa ideia dada pelo Ivan e englobando a música como um todo, podemos pensar a canção como a desilusão amorosa de um nordestino que vai cantar suas mágoas para um ouvinte qualquer e aí então, talvez pra afogar essas mágoas, passa a só comer aquele que ouve o lamento.

É que durante a canção Belchior vai falando de frustrações e enfatiza que esses casos de família e de dinheiro ele nunca entendeu bem. Comer o seu ouvinte seria uma espécia de catarse, de redenção de alguém que, mesmo sem se ver na hora do gol, continuava mais angustiado que o goleiro nessa hora.

Bem, vou terminar as releituras com essa de Fotografia 3×4, mas desde já deixo a dica e a sugestão para os leitores, para que busquem mais possibilidades de releitura nas canções do velho Belch, com certeza dá pra achar mais coisa e, além de tudo, nessa busca você também com certeza irá se deparar com coisas muito válidas e interessantes para qualquer ouvido humano.

Antes de fechar o post queria pontuar mais duas coisas: a primeira é que, como disse no primeiro post dessa série, a intenção do Releituras Pop é ser um espaço de dar risada mesmo, buscando na cultura pop possíveis motivos de risadas, se, no meio desse exercício encontrarmos alguma discussão ou algum substrato filosófico tanto melhor, em caso contrário, não vejo problema algum também.

O segundo ponto é que, talvez a intenção maior desse post (e bem utópica também) é tentar “reviver” os versos, as canções e o próprio Belchior nos dias de hoje. Conheço muita gente que vê Belchior apenas como uma figura engraçada e estranha, que está desaparecido há muito tempo e faz piadas dele como um possível participante do seriado “Lost” ou coisa do tipo. Isso aconteceu por causa de uma aparição dele no Fantástico, onde muito se falou desse sumiço de Belchior. Na entrevista, ele estava no Uruguai e parecia bem a vontade por lá. Sem querer bancar o chato, o que eu queria mesmo era uma volta desse rapaz latino-americano para o seu país de origem e aí, quem sabe, junto com ele sua música também voltava e aí muitas outras pessoas pudessem entrar em contato com ela.

Como abri o post com uma citação do protagonista desse post, resolvi também fechá-lo com outra, agora da canção Arte Final, um apelo e uma provocação bem ao estilo irônico de Belchior. Apesar de sua extensão vale a pena ser citada:

“E então, my friends?
Bastou vender a minha alma ao diabo
E lá vem vocês seguindo o mau exemplo
Entrando numas de vender a própria mãe
Alguém se atreve a ir comigo além do shopping center? hein? hein?
Ah! Donde eston los estudiantes?
Os rapazes latinos -americanos?
Os aventureiros? os anarquistas? os artistas?
Os sem destino? os rebeldes experimentadores?
Os benditos? malditos? os renegados? os sonhadores?
Esperávamos os alquimistas, e lá vem os arrivistas
Os consumistas, os mercadores
Minas, homens não há mais?
Entre o céu e a terra não ha mais nada que sex, drugs and
rock ‘n’ roll?
Por que o adeus as armas
Ahhh! Não perguntes por quem os sinos dobram
eles dobram por ti.
Ora, senhoras, ora senhores
uma boa noite lustrada de néon pra vocês
o último a sair apague a luz do aeroporto
e, ainda que mal me pergunte
-a saída, será mesmo o aeroporto?”

Sargento Garcia: a marginalidade homoerótica e filosófica

Acabei de publicar no Sempre um livro, uma reflexão acerca de um conto de Caio Fernando Abreu, intitulado “Sargento Garcia”.

Falar de Caio Fernando Abreu hoje é em dia é sinônimo de modinha coisa do tipo, como um dia falar de Nietzsche já foi sinônimo de modinha ou coisa tipo. O que quero deixar claro é que, pelo menos na minha singela opinião, a obra de Caio Fernando Abreu é riquíssima e merece muitas leituras, estudos e afins, não é apenas pra virar frase bonitinha de facebook.

Um possível estudo, uma possível reflexão sobre essa obra eu acabei de fazer e publico aqui também. Tento encontrar pontos de contato entre o homoerótico e o estudante de Filosofia. O que? Tá assustado? Dá uma lida aí, sem muito preconceito e vê se concorda, discorda, curte ou descurte o meu texto:

Sargento Garcia: a marginalidade homoerótica e filosófica

O conto “Sargento Garcia”, parte integrante do livro “Morangos Mofados” de Caio Fernando Abreu é tido por muitos como uma bandeira do homoerotismo. Ele por si só, adapatações cinematográficas e vários estudos denunciam essa característica do conto. No entanto, o que muitas vezes é esquecido é a possibilidade de contato dessa marginalidade do homoerotismo, enquanto necessidade de se afirmar frente os preconceitos da sociedade, com a marginalidade da Filosofia, em especial do estudante de Filosofia, frente a essa mesma sociedade. O que pretendo aqui é tentar explicitar esse contato, e mostrar como ao mesmo tempo distantes e sem uma conexão, o homoerotismo e a Filosofia também podem ser, em alguns aspectos, muito próximos.

O conto, a exemplo de vários outros contos do mesmo autor, tem uma escrita bem clara e direta, ainda que ocorram divagações durante as falas das personagens e do próprio narrador, Caio F. diz muito bem o que quer dizer sem muitos preconceitos ou ”não me toques”.

Tudo começa com uma apresentação ao Exército – experiência comum e necessária a todos os homens de dezoito anos – onde a personagem que dá nome ao conto, Sargento Garcia, demonstrando-se alguém rude e severo chama pelo nome de Hermes, a outra personagem de destaque no conto. Durante um longo diálogo entre ambos, a atmosfera do lugar também vai sendo descrita pelo autor. A ênfase é no mau cheiro dos corpos dos homens nus, misturados a bosta de cavalo e à severidade de Sargento Garcia.

Um momento importante do diálogo que pretendo destacar é aquele que está relacionado com a Filosofia:

– Trabalha?

– Sim, meu sargento – menti outra vez.

– Onde?

– Num escritório, meu sargento.

– Estuda?

– Sim, meu sargento.

– O quê?

– Pré-vestibular, meu sargento.

– E vai fazer o quê? Engenharia, direito, medicina?

– Não, meu sargento.

– Odontologia? Agronomia? Veterinária?

– Filosofia, meu sargento. (ABREU, 1995, p. 61).

A reação de Sargento Garcia diante da escolha do curso de Hermes é singular e sintomática, logo em seguida ele diz:

– Pois, seu filósofo, o senhor está dispensado de servir à pátria. Seu certificado fica pronto daqui a três meses. Pode se vestir. – Olhou em volta o alemão, o crioulo, os outros machos. – E vocês, seus analfabetos, deviam era criar vergonha nessa cara porca e se mirar no exemplo aí do moço. Como se não bastasse ser arrimo de família, um dia ainda vai sair filosofando por aí, enquanto vocês vão continuar pastando que nem gado até a morte. (ABREU, 1995, p. 61-62).

Após a dispensa, Hermes vai caminhando de volta pra casa, mas no meio do caminho vê um Chevrolet antigo parar na sua frente. Era o Sargento Garcia. Agora sem a mesma severidade que demonstrava no quartel, o bigodudo e másculo sargento oferece uma carona a Hermes, este, meio sem jeito, entra no carro.

Dentro do carro a relação entre os dois, que até então era hierárquica e respeitosa, vai começando a se suavizar e no momento em que Sargento Garcia começa a passar a mão na coxa de Hermes o caráter homoerótico do conto é explicitado de vez.

Em meio às passadas de mão e afins, a conversa de ambos gira em torno do fato de Hermes ter escolhido a Filosofia como curso. Sargento Garcia se mostra interessado nisso e diz que apesar de ter de ser durão no quartel, enquanto pessoa ele gosta da tal Filosofia.

Hermes então fala sobre Leibniz, filósofo racionalista que desenvolveu a teoria das mônadas, com certa empolgação. Sargento Garcia até se interessa, mas meio que voltando à sua realidade – que é o quartel, a vida dura e cinza – diz que lá não tem nada desse negócio de “mônicas” (sic) não. A troca de mônadas por mônicas parece ser intencional, o autor tenta deflagrar ainda mais, de maneira sutil, a estranheza que a Filosofia e certos conceitos filosóficos causam naqueles que vivem à margem dela.

O contato dos dois dentro do carro vai esquentando e Sargento Garcia sugere que eles vão a um lugar mais reservado e confortável. É aí que entramos no ápice do conto. Sargento Garcia leva Hermes a nada mais, nada menos do que uma “casa de quartos”, comandada pela travesti Isadora.

Ela mostra-se muito conhecida do Sargento Garcia, o que indica que o sargento é um cliente assíduo do lugar. Isadora conduz o casal até o quarto nº 7 e então é descrito o ato sexual dos dois, sem muito pudor. Como disse acima, Caio Fernando Abreu não parece querer se enquadrar em uma escrita politicamente correta, asséptica e isenta de termos aparentemente horrorizantes.

Hermes tem então a sua primeira vez. No fim do conto, é descrita a volta pra casa do jovem e ao deparar-se com uma estátua grega no meio da rua ele vai lembrando nomes de deuses gregos, até que lembra o seu:

Zeus, Zeus ou Júpiter, repeti. Enumerei: Palas Atena ou Minerva, Posêidon ou Netuno, Hades ou Plutão, Afrodite ou Vênus, Hermes ou Mercúrio. Hermes, repeti, o mensageiro dos deuses, ladrão e andrógino. Nada doía. Eu não sentia nada. Tocando o pulso com os dedos podia perceber as batidas do coração. (ABREU, 1995, p. 70).

Nesse momento se dá a epifania completa de Hermes. Ele, que nunca havia transado, se descobriu de vez homossexual. E ao lembrar que Hermes era ladrão e andrógino se identifica de vez com seu próprio nome. A trajetória de Hermes do quartel ao quarto de hotel é a trajetória de alguém que se descobre e se revela, no jargão do senso comum, Hermes literalmente “saiu do armário”. E a importância disso para o conto é fundamental. Tanto que na última frase do conto Hermes nos diz: “O bonde guinchou na curva. Amanhã, decidi, amanhã sem falta começo a fumar.” (ABREU, 1995, p. 70).

Hermes começar a fumar é uma metáfora para dizer que Hermes agora assumirá de vez sua condição sexual. O jovem estudante de Filosofia experimentou e gostou da coisa.

Essas reflexões acerca do homoerotismo dentro do conto são geralmente as mais exploradas, afinal, o ponto central do conto é mesmo este. No entanto, abusando da marginalidade e sendo marginal dentro do marginal, proponho uma leitura que relacione essa dificuldade de aceitação perante a sociedade em relação ao homoerotismo, com a mesma dificuldade em relação ao estudante de Filosofia (que, no caso, pode ser representado por este que vos fala).

Ao escolher Filosofia como futuro curso da personagem Hermes, Caio Fernando Abreu poderia ter feito várias outras escolhas, como, por exemplo, Letras, o curso que talvez tivesse mais proximidade com o próprio autor. No entanto, a escolha da Filosofia, segundo minha leitura, não foi feita sem propósito. Eu e qualquer outro estudante de Filosofia podemos dizer melhor do que ninguém como são únicas e diferentes as reações do senso comum ao escutarem de nós que fazemos Filosofia.

Nos dias de hoje, parece existir um preconceito velado a esta resposta. As pessoas estão esperando inúmeras respostas, mas Filosofia não. A reação mais comum e imediata das pessoas é soltar um “legal” desinteressado ou coisa que o valha e logo mudar de assunto, desconversar.

Pensemos um pouco: estas reações, guardadas as devidas proporções, não são bem semelhantes com as reações das pessoas frente aqueles que se dizem gays, lésbicas, bissexuais ou transsexuais?

Esse é o meu ponto. O preconceito velado frente a estudantes de Filosofia e homossexuais, apesar de tudo, ainda existe nos dias de hoje e a intenção de Caio Fernando Abreu, ao escolher a Filosofia como futuro curso de Hermes, talvez tenha sido nos mostrar também isso.

Antes que apareçam interpretações equivocadas sobre esta minha reflexão é bom esclarecer bem as coisas: não quis dizer em nenhum momento que o homoerotismo e a Filosofia têm de servir de condição de possibilidade um para o outro. Sei que isso seria uma interpretação absurda, mas o mundo atual tem suas absurdidades, é bom lembrar. Homoerotismo é uma coisa, Filosofia é outra. Os pontos de contato, segundo a minha leitura, são a marginalidade de ambos e o preconceito velado também sofrido por ambos.

A opção sugerida pelo autor no conto, para aqueles que sofrem preconceito por conta de suas escolhas sexuais é a de se entregar de fato a esta condição, assumir de vez isso e enfrentar de frente todo e qualquer preconceito que possa surgir. Mas e os estudantes de Filosofia, como devem encarar esse preconceito velado que sofrem?

A exemplo do que fez Hermes, chega uma hora que não dá mais pra ficar se escondendo dos outros e iludindo a si próprio, chega uma hora em que é necessário assumir efetivamente as suas escolhas e conviver com elas.

Ser estudante de Filosofia é sinônimo de desprestígio perante a sociedade, ao senso comum. Ser estudante de Filosofia é muitas vezes ser taxado de louco, lunático ou até mesmo (e aí quem sabe já entraríamos em uma nova discussão, em um novo preconceito) de maconheiro.

Frente a todos esses rótulos e preconceitos, o estudante de Filosofia, se realmente quer afirmar essa sua condição, deve ter a atitude de encarar tudo isso de frente, como se fossem apenas comentários sem nenhum sentido e fundamentação que não influem de fato na caminhada do estudante de Filosofia (como se fossem?).

Parafraseando Hermes e lembrando o dia que resolvi assumir de fato a Filosofia, encerro o texto dizendo que: amanhã, decidi, amanhã começo sem falta a ler.

REFERÊNCIAS

ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

INTERNET

http://bibliotecadigital.unec.edu.br/ojs/index.php/unec02/article/viewFile/278/352

http://www.fileden.com/files/2009/4/27/2420624/Artigos/EROTISMO%20E%20EPIFANIA%20EM%20SARGENTO%20GARCIA%20DE%20CAIO%20FERNANDO%20ABREU_MARCELO%20BARBOSA%20PEIXOTO.pdf

FILMOGRAFIA

Sargento Garcia, curta-metragem. (35mm, cor, 15 min, 2000).

O seriado contemporâneo

De uns anos pra cá tornou-se algo muito comum entre boa parte da população o hábito de assistir séries ou seriados.

O blogueiro aqui, desde 2010 mais ou menos, também entrou nessa onda. Entre um seriado e outro, assistido na TV aberta ou então baixado da internet, ia conhecendo histórias novas e interessantes, mas de certa forma sempre permanecia num nível raso, de espectador e nada mais.

No começo desse an, entretanto, me deparei com aquele que considero o melhor seriado já produzido, e foi produzido há um bom tempo já. Falo de Twin Peaks, de David Lynch. Um seriado onde o bizarro, o grotesco e o onírico formam um tripé que baliza toda a trama e que tiveram um impacto muito forte em mim. Vale a menção pra futuros posts, mas hoje vou falar de um outro seriado.

Depois de Twin Peaks chegou até o blogueiro um seriado que, visto de longe é até bem singelo: Black Mirror. Bem singelo porque, diferente da grande maioria dos seriados possui uma primeira temporada de apenas três episódios. Só que cada episódio parece conter muito mais críticas e sacadas do que vários outros seriados.

O negócio é o seguinte: assisti apenas o primeiro episódio ontem e fiquei doido pra escrever sobre, surgiram várias ideias. Uma delas é passar a publicar aqui no Un Quimera, mesalmente, um post sobre cada um dos três episódios.

Começo então hoje com:

1×01 – The National Anthem

Eu penso que pra qualquer um é quase impossível não ter assistido, alguma vez, um filme, série ou coisa parecida que não tenha um sequestro e um pedido de resgate e a trama, posteriormente, desenvolvida a partir disso.

Pode-se dizer que este primeiro episódio de Black Mirror, série inglesa criada por Charlie Brooker, segue, em última análise, esse roteiro básico e já muito antigo. No entanto é aí que começa a surgir a genialidade e a visão crítica da série. A partir de um modelo aparentemente comum e banal assuntos primordiais dentro da problemática contemporânea (quando falo contemporâneo aqui entenda século XXI, 2012 se preferir, não é nem um contemporâneo século XX, muito menos um contemporâneo com nuances de science fiction, é contemporâneo AGORA) e que geralmente não são discutidos.

Entrando no enredo da série de vez e com um cuidado gigantesco pra não deixar escapar nenhum spoiler, a história toda começa com o sequestro de  Princesa Susannah, a princesa da Inglaterra. As coisas vão saindo do roteiro normal de sequestro/pedido de resgate, quando o vídeo que mostra Susannah em cativeiro, fazendo o pedido de resgate é lançado pelo sequestrador no YouTube, comentado freneticamente no Twitter e tem como pedido de resgate algo extremamente inusitado (que não merece ser contado aqui, mas sim visto) e que em si já possui outras implicações muito vivas na sociedade contemporânea; imagem pode ser poder.

O desenrolar da trama segue tocando nesses pontos já citados, como por exemplo a repercussão do caso via twitter e as tentativas de resolução do mesmo por parte do governo britânico e em especial por parte do primeiro ministro Michael Callow, figura central do episódio.

Após uma subdivisão em quatro partes dos pouco mais de quarenta minutos desse episódio, a sequência final, que mostra o depois, a repercussão final do caso de sequestro da princesa coloca, em poucas cenas, novas e múltiplas interpretações de um fato fictício que de tão real pode acontecer a qualquer momento por aí.

Não falei tanto, até pra não estragar as surpresas e os socos no estômago que esse seriado deve causar, a dica é assistir e ver se tudo o que eu falei aqui é, efetivamente, interessante e digno de discussão ou se os outros tantos seriados que pululam por aí são mais interessantes que o micro Black Mirror. Aposto minhas fichas na primeira opção.

Releituras Pop #02

O que prezar na hora de criar uma obra de arte? O resultado ou o processo criativo?

Vai ser em cima dessas questões que o segundo post da série Releituras Pop abrirá o mês de abril no Un Quimera.

É bom frisar que, ao tentar responder estas perguntas, não pretendo entrar em um julgamento de valor ou qualidade. Quer dizer: não estou dizendo que é melhor ou mais bonito valorizar o resultado em detrimento do processo criativo ou vice-versa, porém, e este é o ponto onde quero chegar, a escolha de uma dessas duas opções fatalmente leva a obra de arte para caminhos bem distintos.

Até pelo fato do nome da série ser Releituras Pop, vou tentar utilizar músicas do mundo pop para ilustrar essa polaridade. E pra não dizer que estou sendo saudosista ou coisa do tipo, vou lançar mão somente de exemplos da música contemporânea. Vamos lá.

Acredito que lá pelos idos de 2009 todo mundo, se não ouviu, ao menos ouviu dizer sobre o hit do momento: a Dança do Créu.

Pra quem quiser relembrar temos o vídeo:

A pergunta é: onde fica o processo criativo nessa música?

Não nego que, como já disse acima, essa música fez um sucesso estrondoso em 2009, caiu na boca do povo, tocou em todas as rádios, etc e tal. Mas qual teria sido a motivação de MC Créu ao compor esta música se não o resultado? Ou seja, a fama, o sucesso, o dinheiro? Ou será que por acaso ele pensou em como a gíria créu pode ser inserida dentro do contexto social das pessoas ou coisa do tipo?

Vamos agora para um outro exemplo. Ano passado, quem também fez muito sucesso foi o rapper Criolo. Até então não muito conhecido no mainstream, Criolo, com o disco Nó na Orelha, ganhou inúmeros prêmios, elogios e etc.

Uma das canções do premiado disco é Scurilhos:

Eu, mesmo se quisesse muito, jamais saberia qual foi a intenção e a motivação de Criolo para escrever essa música, no entanto, dá pra pelo menos tentar dar palpites sobre isso e eventualmente meu palpite será dizer que Criolo valorizou e muito o processo criativo dessa canção.

Ao tocar em problemas sociais, utilizar gírias talvez tão comuns quanto o próprio créu, mas pensando-as de forma que se adequem a uma crítica ou a uma exaltação de sua cultura, Criolo deve ter pensado e se dedicado muito na produção da música. Ele não esperava um bom resultado? Ele também não queria fama, sucesso e dinheiro? Não sejamos hipócritas, é lógico que, inserido num contexto de indústria fonográfica, ele poderia querer tudo isso sim. Porém, e aqui está o grande diferencial, isso não parece ser o objetivo principal dele. Tanto em suas próprias canções quanto em entrevistas e afins, Criolo se mostra como alguém preocupado socialmente, culturalmente e que, por conta disso, não visa o resultado em detrimento ao processo criativo.

Colocados dois exemplos contempoorâneos e devidamente explicado os porquês deles valorizarem mais o resultado ou o processo criativo, termino o post dizendo praticamente a mesma coisas que já disse antes: escrevi tudo isso hoje não pra falar que Criolo é melhor do que MC Créu ou vice-versa, não pra falar que a Dança do Créu é mais interessante que Sucrilhos ou vice-versa. Eles são apenas bem diferentes. A questão aqui é perceber as diferenças e identificar o porquê delas existirem.

Se você faz uma música, um quadro, um poema, qualquer coisa, visando e valorizando o resultado, a sua criação tende  a ser automática e repetitiva, afinal, se você vê um resultado que deu certo, fatalmente você pensará em copiá-lo ou ao menos se assemelhar a ele.

Se você faz uma música, um quadro, um poema, qualquer coisa, visando e valorizando o processo criativo, a sua criação tende a ser mais bem pensada, sigular, cheia de elementos que façam dessa criação algo enriquecedor tanto para criador quanto para aqueles que irão admirar a criatura. O resultado então torna-se apenas uma consequência.

Esse foi o segundo post da série Releituras Pop. Que tal repensar um pouco sobre essas diferenças dentro das músicas pop? Vocês leitores têm mais algum exemplo que se encaixe na valorização do resultado ou na valorização do processo criativo?