“Deixando a profundidade de lado, eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia! Fazendo tudo e de novo dizendo sim à paixão, morando na filosofia.”
Começo o mês de maio com mais um post da série Releituras Pop.
A ideia de hoje é homenagear e ao mesmo tempo dar algumas risadas, relendo e dialogando com a obra de um cara que tem seu nome marcado na história da música brasileira. Mostrar que mesmo os monstros sagrados da música pop também tem seus momentos ambíguos, não grandiosos, etc.
Não foi sem propósito que comecei o post de hoje com um dos versos mais bonitos e tocantes da música brasileira. No entanto, na mesma canção que contém este verso (Divina Comédia Humana) também temos outros versos bem engraçados, vamos começar então com ela:
Divina Comédia Humana
Esta canção, linda e melódica, já de cara (em seu título) faz alusão a duas grandes obras da literatura mundial, a saber: A Divina Comédia, de Dante Alighieri e uma obra homônima de Honoré de Balzac.
Deixando de lado as possíveis influências que estes dois livros podem exercer na canção, vamos direto a letra dela e aqui, lógico, pegaremos carona nas interpretações feitas por Zeca Baleiro e sua plateia no Festival de Músicas Infames (se quiser relembrar isso tá lá no primeiro post dessa série):
Em meio a tanta beleza e delicadeza nos versos dessa canção, Belchior depois de dizer que estava mais angustiado que o goleiro na hora do gol (bota angústia nisso!) e sentir alguém entrando nele como o sol no quintal nos brinda com uma “cacofonia sexual” (pode ir se acostumando, praticamente tudo nesse post será levado para esse lado da cacofonia e do duplo sentido, quase sempre remetendo ao lado sexual da coisa. Falsos moralismos e mimimis não vão gostar nada disso, então, se você, caro leitor, estiver nessa onda pode até parar de ler por aqui). Aí o analista amigo meu (aí o analista me comeu).
Depois desse fato ambíguo, Belchior diz que o amor é uma coisa mais profunda que uma transa sensual, mas, logo em seguida, contrariando seu analista, deixa a profundidade de lado e nos fala o verso que abre esse post.
Logo em seguida vem a outra possível interpretação ambígua-sexual da canção: “Quero gozar no seu céu, pode ser no seu inferno”. O que poderiam ser céu e inferno aqui? Tá fácil, não? Essa eu vou deixar pros leitores me dizerem nos comentários.
Pra fechar a letra, Belchior cita Olavo Bilac: “Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso, e eu vos direi no entanto: enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto!”
Independente de qualquer releitura pop bizarra, levando pro lado mais banal da coisa, essa canção é uma das obras-primas de Belchior.
Fotografia 3×4
Assim como peguei carona nas interpretações de Zeca Baleiro e sua plateia na releitura anterior, pego carona agora na dica do amigo e leitor Ivan Bilheiro, que no último encontro do Sempre um livro (nosso grupo de leituras), me lembrou de uma outra “cacofonia sexual” de Belchior, dessa vez na Fotografia 3×4.
Mais uma vez, antes de qualquer releitura pop, tenho que dizer que essa é outra daquelas canções de Belchior que dizem muito pro blogueiro aqui. Quantas e quantas vezes já não ouvi a Fotografia 3×4 e pensei em tanta coisa, inclusive na tamanha sensibilidade que teve Belchior ao escrever essa música. Cito um verso em especial, pra começar:
“A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia, e pela dor eu descobri o poder da alegria e a certeza de que tenho coisas novas, coisas novas pra dizer!”
O Ivan tinha me dado a ideia da cacofonia de uma frase muito repetida na música, em especial no final: Eu sou como você, eu sou como você, eu sou como você, que me ouve agora! (Eu só como você, eu só como você, eu só como você que me ouve agora!).
Fotografia 3×4 é um verdadeiro retrato de alguém que vem do Nordeste para o Sudeste e vive aqui todas as angústias que alguém nessa situação vive: a saudade de casa, as dificuldades de aceitação na nova terra, os amores, alegrias e frustrações, enfim, o aprendizado e crescimento de um homem em um lugar novo e desconhecido pra ele.
Fazendo a releitura a partir dessa ideia dada pelo Ivan e englobando a música como um todo, podemos pensar a canção como a desilusão amorosa de um nordestino que vai cantar suas mágoas para um ouvinte qualquer e aí então, talvez pra afogar essas mágoas, passa a só comer aquele que ouve o lamento.
É que durante a canção Belchior vai falando de frustrações e enfatiza que esses casos de família e de dinheiro ele nunca entendeu bem. Comer o seu ouvinte seria uma espécia de catarse, de redenção de alguém que, mesmo sem se ver na hora do gol, continuava mais angustiado que o goleiro nessa hora.
Bem, vou terminar as releituras com essa de Fotografia 3×4, mas desde já deixo a dica e a sugestão para os leitores, para que busquem mais possibilidades de releitura nas canções do velho Belch, com certeza dá pra achar mais coisa e, além de tudo, nessa busca você também com certeza irá se deparar com coisas muito válidas e interessantes para qualquer ouvido humano.
Antes de fechar o post queria pontuar mais duas coisas: a primeira é que, como disse no primeiro post dessa série, a intenção do Releituras Pop é ser um espaço de dar risada mesmo, buscando na cultura pop possíveis motivos de risadas, se, no meio desse exercício encontrarmos alguma discussão ou algum substrato filosófico tanto melhor, em caso contrário, não vejo problema algum também.
O segundo ponto é que, talvez a intenção maior desse post (e bem utópica também) é tentar “reviver” os versos, as canções e o próprio Belchior nos dias de hoje. Conheço muita gente que vê Belchior apenas como uma figura engraçada e estranha, que está desaparecido há muito tempo e faz piadas dele como um possível participante do seriado “Lost” ou coisa do tipo. Isso aconteceu por causa de uma aparição dele no Fantástico, onde muito se falou desse sumiço de Belchior. Na entrevista, ele estava no Uruguai e parecia bem a vontade por lá. Sem querer bancar o chato, o que eu queria mesmo era uma volta desse rapaz latino-americano para o seu país de origem e aí, quem sabe, junto com ele sua música também voltava e aí muitas outras pessoas pudessem entrar em contato com ela.
Como abri o post com uma citação do protagonista desse post, resolvi também fechá-lo com outra, agora da canção Arte Final, um apelo e uma provocação bem ao estilo irônico de Belchior. Apesar de sua extensão vale a pena ser citada:
“E então, my friends?
Bastou vender a minha alma ao diabo
E lá vem vocês seguindo o mau exemplo
Entrando numas de vender a própria mãe
Alguém se atreve a ir comigo além do shopping center? hein? hein?
Ah! Donde eston los estudiantes?
Os rapazes latinos -americanos?
Os aventureiros? os anarquistas? os artistas?
Os sem destino? os rebeldes experimentadores?
Os benditos? malditos? os renegados? os sonhadores?
Esperávamos os alquimistas, e lá vem os arrivistas
Os consumistas, os mercadores
Minas, homens não há mais?
Entre o céu e a terra não ha mais nada que sex, drugs and
rock ‘n’ roll?
Por que o adeus as armas
Ahhh! Não perguntes por quem os sinos dobram
eles dobram por ti.
Ora, senhoras, ora senhores
uma boa noite lustrada de néon pra vocês
o último a sair apague a luz do aeroporto
e, ainda que mal me pergunte
-a saída, será mesmo o aeroporto?”