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Tropicália: a síntese tupiniquim

Acabo de chegar do cinema onde fui assistir ao documentário Tropicália, dirigido por Marcelo Machado. Ao sair da sala me deparo com uma chuvosa e apagada cidade. Vim pra casa no escuro. Postes sem luz, pessoas sem guarda-chuva.

Mas cheguei. E pouco depois a luz voltou. E agora estou aqui escrevendo este texto que na verdade nada tem a ver com essa minha trajetória de volta pra casa. Vamos ao que interessa então.

As contribuições do movimento tropicalista para a cultura e para a sociedade brasileira em todos os seus âmbitos são, diria eu, estratosféricas! Esse documentário, e o último disco de Tom Zé, Tropicália Lixo Lógico, são apenas algumas tentativas (muito bem sucedidas, creio eu) de tentar estudar, repensar e expor ao povo brasileiro, hoje, mais de 40 anos depois da eclosão do movimento, toda essa intensidade e subversão da Tropicália e do Tropicalismo (aqui vale uma breve distinção de conceitos, feita por Gilberto Gil no próprio documentário: a Tropicália não resume a um movimento, é uma expressão estética que surgiu no Brasil na década de 60 e que ainda hoje é viva e presente, já o Tropicalismo é um movimento, que vigorou nos anos de 1967 e 68 e terminou aí).

O documentário de Marcelo Machado começa com os exilados Caetano e Gil (“protagonistas” do filme), cantando num programa de TV em Lisboa, em 1969. O tom tristonho de Caetano afirmando veementemente que o movimento tropicalista naquele momento já havia acabado (como esclarecido acima) e que dali pra frente ele nada sabia, só sabia que teria de ir pra Londres, de certa forma já mostra um pouco do caráter fragmentário e aberto da Tropicália. Vejamos: o movimento tropicalista, à revelia de todas as suas qualidades, jamais se afirmou como um defensor strictu sensu das ideologias de esquerda, dos nacionalismos e afins, isso é abordado em algumas falas do filme e deixa claro que a aparente bagunça que foi a Tropicalismo na verdade era algo muito maior, que não se limitava a certas ideias prontas e fixas, mas buscava, por outro lado, uma maior aglutinação de vários elementos que julgava válidos serem abordados e mostrados.

Talvez por causa disso, durante o documentário momentos do movimento mostram os vários conflitos e rupturas deste: desde a fusão, na época totalmente vanguardista e inesperada, de uma orquestra com a guitarra elétrica num Brasil em plena ditadura (cena ocorrida num Festival da Record, na canção Domingo no Parque, de Gilberto Gil, acompanhado pelos Mutantes e pelo maestro Rogério Duprat), passando pelas polêmicas e desavenças de Caetano e Gil com os estudantes da USP, que julgavam que o movimento tropicalista teria se “rendido” à cultura pop e teria ido contra as lutas estudantis e afins (o ápice dessa polêmica é retratado no filme com a apresentação de É proibido proibir de Caetano Veloso, a letra dessa canção se auto explica) e chegando, enfim, até ao exílio de Caetano e Gil em Londres, onde ambos sentem “como se ter ido fosse necessário para voltar” e voltam para, no próprio filme, falar sobre suas impressões acerca daquele momento e se emocionarem bastante ao assistirem um vídeo com a “canção da volta”, Back in Bahia.

Outro ponto digno de ser destacado remete mais uma vez às polêmicas do Tropicalismo com os estudantes da esquerda uspiana. O movimento liderado por Caetano e Gil, nesse âmbito sócio-econômico, flutuava da esquerda para a direita e vice-versa. Existia o empresário Guilherme de Araújo, que no filme deixa claro que fez mesmo do Tropicalismo algo pop e comercial, televisivo e quiçá alienado, mas ao mesmo tempo aparece a figura de Rogério Duarte, que se considera um “desempresário” do movimento, por insuflar nos artistas ideais de contestação e rebeldia.

Como já foi dito acima, a Tropicália caracteriza-se, dentre outras coisas, pelo seu caráter fragmentário e isso faz dela algo maleável, sem uma ideologia e um engajamento propriamente ditos. Por outro lado, no entanto, o cancioneiro tropicalista está repleto de críticas e provocações ao Capitalismo, à cultura dominante e à várias outras estruturas da sociedade. O que acontece é que Caetano, Gil e cia. parecem nunca ter sentido a necessidade de uma criação estética que se importasse em primeiro lugar com os problemas sócio-econômicos da população, suas preocupações pareciam residir, em primeiro lugar, na própria criação artística, na liberdade e inventividade de tal coisa. Como dizem os versos de Tom Zé, interpretados pelos Mutantes no filme: “astronauta libertado, minha vida me ultrapassa em qualquer rota que eu faça!” E a rota do Tropicalismo não passava por nenhum dogmatismo ideológico.

Na última meia hora de filme, as principais “personagens” começam a aparecer como estão atualmente e não dá pra deixar de lado a “personagem” Tom Zé. Enquanto todos os outros grandes nomes da Tropicália falaram do movimento com certo saudosismo e lucidez, pois o tempo passou e tudo ficou mais claro de se analisar, Tom Zé, inquieto, destila todas as suas intensas e provocativas ideias sobre a Tropicália, o “braço cantado do pensamento que levou o Brasil da Idade Média para a segunda revolução industrial!”. Tom Zé fala ainda das influências que recebeu a Tropicália e de como ela lidou com isso.

A poesia e a antropofagia de Oswald de Andrade e do Modernismo da década de 1920, o Concretismo de Augusto de Campos, Décio Pignatari e cia., o teatro de José Celso Martinez, o cinema de Glauber Rocha, a Bahia e São Paulo, a África e a Europa, a malandragem e a erudição, tudo isso recheou e impulsionou a Tropicália.

Dentre as estratosféricas contribuições que a Tropicália deixou para o Brasil, muitas talvez nem sequer foram abordadas aqui. A imensidão tropicalista sugere várias outras análises e interpretações, no entanto, para me ater a uma delas e fechar o texto, retorno ao título e afirmo que, segundo minha interpretação, a Tropicália é uma SÍNTESE de toda a efervescência cultural, de toda a inquietação existencial e política do Brasil dos fins da década de 60.

Como sugere o título do livro de Tom Zé que também fala sobre essa temática, Tropicalista Lenta Luta, e a canção de Caetano que fecha o documentário (It’s A Long Way), a Tropicália, apesar de toda a rapidez do movimento tropicalista, ainda se demora, lenta, e vê um longo horizonte pela frente: sua libertação criativa tem o potencial de continuar influenciando e reverberando na nossa cultura e, em última análise, prolongar as ideias daqueles jovens baianos que foram para São Paulo em meados da década de 60.

Antes que a luz apague de novo, posto aqui essa breve análise sobre o documentário, que já há algum tempo me despertava interesse e que, apesar de ter focado bem mais no Tropicalismo e não na Tropicália em si, constitui um belo documento para pesquisa e reflexão acerca deste marco na história brasileira.